Carregando


OS DELATADOS FALAM POR ÚLTIMO? UMA ANÁLISE CRÍTICA DA DECISÃO DO SUPREMO


O Supremo Tribunal Federal, em decisão plenária majoritária, traçou comando hermenêutico no sentido de que réus delatados têm o direito falar por último em razões finais. O precedente tem potencial efeito devastador sobre a operação Lava Jato, mas enreda-se em fato legislativo inusitado: a inexistência de regra processual ou material, determinando a ruptura do padrão de concomitância de manifestação dos réus, delatores ou delatados, para fins de memorais ante sentenciais.  

Sem cortinas, o art. 403 do Código de Processo Penal (CPP) - em nenhuma linha ou entrelinha - previu a possibilidade do réu delatado falar posteriormente a eventuais delatores. Por sua vez, a lei da colaboração premiada (lei 12.850/13), no artigo 22, foi categórica ao dispor: "Os crimes previstos nesta lei e as infrações penais conexas serão apurados mediante procedimento ordinário previsto no decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)". E, como visto, o CPP não exige que réus delatados falem por último.        

Adicionalmente, há uma questão nodal sobre os limites da cognição em habeas corpus, ainda mais quando derivado de decisão de Tribunal Superior. Frisa-se que o writ foi impetrado contra "recurso ordinário em habeas corpus" (RHC 96059/PR), julgado pela quinta turma do STJ. Consoante reiterada construção pretoriana, o remédio heroico não pode ser usado como sucedâneo recursal, tendo Supremo já decidido que "contra acórdão exarado em recurso ordinário em habeas corpus remanesce a possibilidade de manejo do recurso extraordinário previsto no art. 102, III, da Constituição Federal. Diante da dicção constitucional, inadequada a utilização de novo habeas corpus, em caráter substitutivo" (HC 130916/SP, DJe 17/6/16). 

Ainda, por fundamental, destaca-se que a decisão da quinta turma/STJ, à unanimidade, não conheceu do recurso ordinário por ausência de capacidade postulatória, face à inexistência de procuração nos autos. Ou seja, não houve pronunciamento da Corte Superior sobre o mérito da pretensão, mas mera rejeição recursal de fundo adjetivo. Logo, a bitola de conhecimento do Supremo, à luz da materialidade do ato supostamente coator, estava adstrita à questão processual postulatória, sob pena de insuperável supressão de instância. Sobre o ponto, destaca-se recentíssima do STF: "A supressão de instância impede o conhecimento de Habeas Corpus impetrado per saltum, porquanto ausente o exame de mérito perante a Corte Superior" (HC 172800 AgR/SP, DJe 16/9/19).      

Naturalmente, restaria a salvadora hipótese de concessão de ordem ex officio para tanto, haveria que existir chapada ilegalidade, flagrante abuso de poder e/ou teratologia gritante. Todavia, soa difícil acreditar que tais graves situações jurídicas teriam o aval colegiado da egrégio STJ, no exercício soberano de garantir a unidade hermenêutica da legislação infraconstitucional.

Nesse contexto fático, até a manifestação plenária do STF, inexistia qualquer regra jurídica vigente na toada do inovador conteúdo hermenêutico, acolhido pela maioria da Corte. Logo, se tal "regra" será fixada por iniciativa jurisprudencial, o marco de vigência normativa deve, por simetria, ser a data da respectiva decisão interpretativa do Supremo, sob pena grave instabilidade jurídico-institucional, especialmente quando todo o sistema judicial, inclusive o egrégio STJ, já haviam refutado o argumento defensivo.    

Em tempo, registra-se que a violação à ampla de defesa não traduz linear salvo-conduto retórico. É preciso fixar balizas claras aqui, pois o dano processual, quando existente, exige obrigatória materialidade concreta. Objetivamente, há que se exigir, no mínimo, a tempestiva insurgência argumentativa do réu, acompanhada de exposição categórica do prejuízo defensivo sofrido por força da concomitância de razões finais. Em outras palavras, a lesão constitucional, antes de uma fugidia alegação imaginária, deve retratar uma realidade processual pulsante, eloquente e absolutamente incontornável dos autos.

Ou será que a manifestação do réu-delatado, como último ato, será feita por algum emissor divino, capaz de caminhar sobre as águas e multiplicar o pão da inocência perdida?

Ora, enquanto os anjos não descem à Terra, o fato é que seguiremos a viver em um mundo no qual o crime é uma triste variável da civilização. Por assim ser, o avanço civilizatório pressupõe o sério, decidido e efetivo combate à criminalidade, em especial sobre seus tentáculos políticos que acabam por subverter a moral democrática, estimulando a grave descrença dos cidadãos sobre as instituições do Estado. Mais do que um crime, a corrupção é um tumor de alta agressividade social, com efeitos deletérios sobre a saudável funcionalidade orgânica da democracia, devendo ser extraído com tato e destreza, sob pena de agudo comprometimento do sistema ético da vida em sociedade.

Por tudo, é sim possível a existência de dano e consequente nulidade processual em casos de concomitância de alegações finais de réus delatores e delatados. Mas isso será uma circunstância excepcional concreta e, não, regra geral abstrata. E, sabidamente, as exceções, por sua genética processual anômala, devem ser tempestivamente alegadas, demonstradas e comprovadas por via competente. Afinal, meros soluços de inconformidade não fazem prova de violação à ampla defesa.

Aqui chegando, as complexidades político-constitucionais do Brasil atual muito me fazem lembrar do eminente min. Paulo Brossard que, em voto histórico, após sua vasta experiência parlamentar, bem pontuou: "Agora, como juiz, não faço leis, antes lhes devo obediência". Que a nobre advertência se mantenha viva na consciência daqueles que devem garantir a segurança jurídica de nosso país, elevando a honra e dignidade das instituições da Justiça.

Comentários

Artigos relacionados