Introdução
Em recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, voltou a se colocar o tema da assim chamada interpretação conforme a Constituição, rótulo genérico e nem sempre preciso sob o qual se abrigam diferentes possibilidades de atuação judicial. O breve ensaio que se segue contém o resumo de artigo acadêmico de maior fôlego publicado pelos autores no último número da Revista Ajuris, da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, sob o título "O Papel Criativo dos Tribunais: Técnicas de decisão em controle de constitucionalidade" (clique aqui)1. Trata-se de um esforço de arrumação e sistematização das principais técnicas de decisão utilizadas pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito do controle de constitucionalidade, para desempenhar um papel criativo que vai além da mera procedência ou improcedência da arguição de inconstitucionalidade.
O direito constitucional brasileiro adotou o entendimento de que as normas incompatíveis com a constituição são nulas. Por essa razão, a declaração de inconstitucionalidade de uma lei deve implicar a desconstituição de todos os efeitos que ela produziu, desde a sua edição. É o que se convencionou denominar efeitos retroativos (ou ex tunc) decorrentes da declaração de inconstitucionalidade2. Esse entendimento se consolidou como o dogma da nulidade das normas constitucionais.
Com o tempo, contudo, o Supremo Tribunal Federal deparou-se com diversas situações em que a declaração de inconstitucionalidade com efeitos retroativos ensejaria uma situação extremamente gravosa para os cidadãos que confiaram na validade da norma e que estabeleceram relações com base nela. Nesses casos, o Tribunal se via diante do dilema de atingir situações jurídicas consolidadas, com imenso dano para os jurisdicionados, ou manter uma norma inconstitucional em vigor.
Em virtude de tais circunstâncias, passou a admitir técnicas de decisão intermediárias que mitiguem o dogma da nulidade das normas inconstitucionais, com base nas circunstâncias dos casos concretos. A modulação dos efeitos temporais das decisões que declaram a inconstitucionalidade de uma lei é um exemplo de tais técnicas. Por meio da modulação, o Tribunal mitiga os efeitos retroativos da decisão que declara a inconstitucionalidade de uma norma, fixando o momento temporal a partir do qual deverá valer. A técnica, que foi objeto de criação judicial originalmente, é, hoje, autorizada de forma expressa pelo art. 27 da lei 9.868/99.
A seguir, como antecipado, a exposição sistemática de outras técnicas de decisão de que se vale o STF, com o mesmo fim. O que se irá constatar, com base em inúmeros exemplos concretos, é que o emprego de tais técnicas, a despeito da escassa teorização, constitui uma prática antiga e consolidada na Corte3.
I. Técnicas de decisão: decisões interpretativas e aditivas
As técnicas de decisão intermediárias correspondem justamente àquelas por meio das quais uma corte constitucional ou uma suprema corte produz comandos que se colocam entre a declaração de inconstitucionalidade, com a plena nulidade da norma, e o reconhecimento da constitucionalidade da lei. Elas permitem minimizar os impactos adversos que decorreriam do reconhecimento da sua nulidade plena, bem como conservar o ato normativo impugnado, desde que ajustando o seu sentido.
No que diz respeito à sua força criativa e inovadora, as decisões intermediárias podem assumir duas naturezas diversas, a depender do quantum de inovação produzam no direito: a de decisões interpretativas e a de decisões construtivas. As decisões interpretativas são aquelas em que o Tribunal atribui ou afasta um significado ou paralisa uma incidência que poderia ser extraída do programa normativo da lei, tal como positivada pelo legislador. Nesse caso, o intérprete determina, entre as interpretações possíveis, aquela que melhor efetiva o disposto na Constituição ou suprime significados inconstitucionais que poderiam ser extraídos do relato da norma.
As decisões construtivas, a seu turno, atribuem aos dispositivos interpretados significados que não podem ser diretamente extraídos do programa normativo da lei, mas que podem ser extraídos diretamente da Constituição. Nessa hipótese, há uma maior atuação criativa da Corte, com a adição ou a substituição do sentido atrelado ao texto da norma. As decisões construtivas se tornaram mais conhecidas pelo nome de "decisões manipulativas". Entretanto, optamos pelo termo "decisões construtivas", por entendermos que a expressão "manipulativa" poderia produzir uma conotação negativa, de distorção do significado da norma, que não é o propósito da intepretação jurídica4.
II. Espécies de decisões interpretativas
As decisões interpretativas - que podem ser extraídas do comando da lei -podem ser subdivididas em: (i) interpretação conforme à Constituição (ii) declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto (iii) declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade e o apelo ao legislador e (iv) declaração de lei ainda constitucional em trânsito para a inconstitucionalidade. Passa-se, a seguir, a uma breve descrição de tais técnicas e à apresentação de exemplos de sua aplicação.
A interpretação conforme a Constituição implica redefinir o significado de uma norma à luz da Constituição, conferindo-lhe um sentido que pode ser extraído do texto da norma, mas que não é o mais óbvio à luz do seu teor literal. A título ilustrativo, com base nessa técnica, o STF conferiu interpretação conforme à Constituição à EC 45/04, para esclarecer que o art. 114, incs. I, IV e IX, da Constituição, com a redação atribuída pela emenda, não conferiu à Justiça do Trabalho competência para processar e julgar ações penais, mesmo que em casos envolvendo a organização do trabalho, como alguns órgãos jurisdicionais vinham entendendo. Ponderou-se que sempre que a Constituição pretendeu atribuir jurisdição penal ela o fez expressamente. A decisão foi proferida em 20075.
A declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, a seu turno, é uma técnica que se aproxima da interpretação conforme, descrita acima. Ela estará presente quando um mesmo dispositivo comportar mais de um sentido possível e um de tais sentidos possíveis for afastado, por ser tido como inconstitucional. Constitui exemplo de aplicação dessa técnica a decisão que declara parcialmente inconstitucional, sem redução de texto, a possibilidade de cobrança de um tributo sem a observância do princípio da anualidade. A norma criadora do tributo tem o seu texto preservado, mas suprime-se uma incidência possível, que poderia decorrer do seu programa normativo e que não é compatível com a Constituição: a incidência em desrespeito a tal princípio. Observada essa hipótese de exclusão, os demais significados atribuídos ao dispositivo são considerados conforme à Constituição.6
Uma terceira técnica de que se vale o Tribunal é a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade. Nessa hipótese, o STF reconhece a incompatibilidade de uma norma com a Constituição, mas mantém os seus efeitos, prospectivamente, durante certo período, e formula apelo ao Legislador para que, dentro dele, atue, produzindo uma norma que se ajuste ao parâmetro constitucional. Há quem entenda que essa foi a técnica empregada pelo STF quando afirmou a inconstitucionalidade da lei que criou o Município de Luís Eduardo Magalhães e apelou ao legislador para que sanasse o vício no prazo de 24 (vinte e quatro meses). Essa decisão também data de 20077.
Pode-se incluir, ainda, entre as decisões interpretativas, a declaração de lei ainda constitucional em trânsito para a inconstitucionalidade, técnica de decisão de que se vale a Corte para afirmar a validade de uma lei, enquanto subsistir determinada situação de fato que a justifique. Um exemplo desse tipo de decisão corresponde ao caso em que se reconheceu a validade do prazo em dobro conferido à Defensoria Pública em matéria penal. Na hipótese, o STF firmou o entendimento de que, enquanto a Defensoria não estivesse plenamente estruturada, tal como o Ministério Público, seria válida a garantia do prazo em dobro porque se trataria de medida destinada a igualar instituições que se encontravam em situação desigual, assegurando o princípio da paridade no âmbito processual e a defesa dos hipossuficientes patrocinados pela Defensoria. A decisão data dos idos anos de 19948.
III. Espécies de decisões construtivas (ou manipulativas)
As decisões construtivas se dividem entre decisões aditivas e substitutivas. As decisões construtivas aditivas implicam a adição de um conteúdo à norma, que não pode ser extraído de seu programa normativo, mas que pode ser extraído da Constituição. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, reconheceu a possibilidade de interrupção da gestação de fetos anencefálicos, incluindo no art. 128 do Código Penal uma nova excludente de ilicitude, não descrita expressamente na norma. O Tribunal concluiu que o feto anencefálico constituía uma vida inviável e que, por essa razão, não havia que se falar na configuração do crime de aborto. A decisão foi proferida em 20129.
Por fim, as decisões construtivas substitutivas caracterizam-se por abranger uma declaração de inconstitucionalidade parcial da lei, com a substituição judicial da disciplina inconstitucional por outra. O STF proferiu decisão nessa linha quando afastou o cabimento de ação penal condicionada à representação, em caso de violência doméstica contra a mulher. O Tribunal ponderou que sujeitar à vontade da mulher a representação - dadas a sua situação de sujeição à violência física e psicológica e eventuais situações de dependência econômica - implicava violação do dever estatal de coibir a violência doméstica. Em razão disso, determinou que os arts. 12, inc. I, e 16 da lei 11.340/06 deveriam ser interpretados de forma a assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de violência doméstica. A decisão foi proferida em 201410.
Conclusão
O Supremo Tribunal Federal desenvolveu, ao longo do tempo, diversas técnicas de decisão que lhe permitem proferir decisões intermediárias, a meio caminho entre a declaração de inconstitucionalidade e o reconhecimento da constitucionalidade, com algum retoque criativo. Por meio dessas técnicas, o Tribunal procura preservar a norma - tanto quanto possível - mas ajusta seu conteúdo na medida necessária a torná-la compatível com a Constituição. O uso das referidas técnicas constitui uma prática antiga e bastante consolidada na jurisprudência do Tribunal.
Vale, contudo, observar que, em diversas decisões descritas acima o STF afirmou estar realizando uma interpretação conforme à constituição. Entretanto, uma observação mais cuidadosa permite constatar que o Tribunal tem utilizado a interpretação conforme como uma categoria genérica, que abrange diversas das espécies de decisões descritas acima. Tal postura adotada pela Corte não parece ser a melhor porque impede um tratamento organizado da matéria. Esse foi justamente o objetivo perseguido por este artigo.
De resto, grande parte das categorias descritas acima são praticadas por cortes constitucionais e supremas cortes mundialmente reconhecidas, tais como o Tribunal Constitucional Federal Alemão e a Corte Constitucional Italiana. Parte delas comportam nuances que não foram tratadas aqui. Outras ensejam debates acerca de sua legitimidade democrática que tampouco foram abordados, por limites de espaço.
1 ago. 2014, ADI 4424, rel. Min. Marco Aurélio.